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Quem faz rir é benfeitor da humanidade. Assim deveria ser considerado Amácio Mazzaropi, cujo nascimento completou 110 anos neste sábado, 9. O ítalo-paulistano Mazzaropi, nascido em São Paulo, criou um tipo inesquecível do cinema, o caipira que, ao longo de vários filmes, divertiu gerações de espectadores com falsa ingenuidade.
O Jeca era aquele tipo em aparência tosco e inculto, que parecia fácil de ser enganado pelos espertalhões. No entanto, era ele quem, na hora agá, dava a volta por cima e levava a melhor sobre os engravatados do asfalto que haviam tentado passar-lhe a perna.
A figura criada por Mazzaropi tem suas raízes fincadas na tradição - do Lazarilho de Tormes a Carlitos, o impagável personagem criado por Charlie Chaplin. Tem a ver com as longínquas figuras de Ascilto e Encolpio, malandros que percorrem a Roma de Nero sob a pena mordaz de Petrônio em Satyricon. E aqui no Brasil mantém parentesco próximo com o personagem de João Grilo em O Auto da Compadecida, imortalizado no cinema por Matheus Nachtergaele. A peça é criação de Ariano Suassuna - ele próprio fã da literatura picaresca e de seus heróis mal-ajambrados.
Mas a influência mais óbvia - e mais próxima - é a de Genésio Arruda (1898-1967) que, junto com seu mano, Sebastião, pôs na moda o "humor caipira", imitado pelo jovem Mazzaropi no seu início de carreira em espetáculos mambembes. Chamado pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz, estreia em filmes dirigidos por Abílio Pereira de Almeida - Sai da Frente (1951), Nadando em Dinheiro (1952) e Candinho (1953). Trabalha fora da Companhia em A Carrocinha (1956) e Gato de Madame (1956). Filma no Rio de Janeiro O Fuzileiro do Amor (1957), O Noivo da Girafa (1958) e Chico Fumaça (1958).
Malandro interiorano
Sua trajetória se faz paralela à da chanchada. Se um dos personagens típicos da chanchada era o malandro carioca, o Jeca fazia o tipo do malandro interiorano. Mazzaropi seria uma espécie de sedimentação da "chanchada paulista", embora essa terminologia seja problemática. O fato é que Mazzaropi criou uma figura que ia além do gênero da obra em que atuava. Tanto assim que, mesmo não interpretando o interiorano (ou sua caricatura), mantém o sotaque, o andar e o gestual dos braços com os cotovelos à altura dos ombros, suas marcas registradas para o público que o adorava.
Ao longo da vida, Mazzaropi atuou em 32 filmes, quase sempre com salas lotadas. Foi um caso raro de talento aliado à competência comercial. Quando resolveu trabalhar por conta própria, investiu pesado em equipamentos para seu estúdio em Taubaté. Criou uma distribuidora especial para seus lançamentos e mantinha boas relações com os donos do circuito exibidor. Sua média de público era de cerca de 3 milhões de espectadores por filme (Números da Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de Fernão Pessoa Ramos e Luiz Felipe Miranda).
Esse sucesso, marcante e persistente, não bastou para despertar o interesse da crítica. Reconhecia-se nele um autêntico fenômeno de bilheteria, sem dúvida. Mas os filmes, em si, não despertavam entusiasmo. Eram tidos como toscos, redundantes, conservadores, reacionários mesmo. "Alienantes", para usar terminologia da época.
O mais importante crítico do cinema brasileiro, Paulo Emílio Salles Gomes, admite, em texto para o Jornal da Tarde (Mazzaropi no Largo do Paissandu, de 19/4/73), pouco conhecer do artista. Mas, crítico maior, produz um pensamento luminoso sobre o velho Mazza. "O segredo de sua permanência é a antiguidade. Ele atinge o fundo arcaico da sociedade brasileira e de cada um de nós."
Chanchadas
As chanchadas, outro caso de contínuo sucesso de público, também foram ignoradas pela intelligentsia em seu tempo. Enquanto Oscarito e Grande Otelo faziam o público rir, e forravam o cofre das produtoras e dos donos de cinema, os intelectuais as desprezavam. Depois de esnobada em sua fase de ouro, concentrada entre os anos 1940 e 1950, a chanchada foi enfim reabilitada, quando já não existia mais. De novo é Paulo Emílio quem põe as coisas em seu lugar. Em seu seminal Cinema Brasileiro: Uma Trajetória no Subdesenvolvimento (1973), reconhece na chanchada o elo mais duradouro entre o cinema brasileiro e seu público.
O gênero começou a ser estudado nas universidades, virou assunto de teses e um crítico importante como Sérgio Augusto lançou o livro exemplar sobre a matéria, Este Mundo É Um Pandeiro (1989). Mas então já era tarde. Era como estudar um fóssil ou uma civilização perdida.
As chanchadas e Mazzaropi eram menos ingênuos do que se pensava. Sob a forma da sátira, muitas vezes vestiam a crítica com as roupas do humor. Especialista na matéria, o historiador Elias Thomé Saliba (autor de Raízes do Riso - A Representação Humorística na História Brasileira) entende que a paródia seria uma especificidade do humor nacional. E a relaciona à "incapacidade criativa de copiar", expressão consagrada por Paulo Emílio. Ao copiar, o brasileiro já se apropria do material, o transforma e imprime a ele sua marca. Algo próprio da antropofagia de Oswald de Andrade em seu projeto modernista - "Só me interessa o que não é meu", escreve em seu Manifesto Antropófago, de 1928. Deglutir a cultura do outro e incorporá-la à nossa.
Essas formas cômicas renascem de tempos a outros, mostrando a permanência do seu elo profundo com o público. Foi uma paródia histórica como Carlota Joaquina - A Princesa do Brazil (1994) a marcar o primeiro sucesso da retomada do cinema brasileiro após o desmanche da atividade pelo governo Collor. Ao satirizar a vinda da Família Real para o Brasil, a diretora Carla Camurati conseguiu vencer a indiferença do público com o cinema nacional e rompeu a barreira do milhão de ingressos vendidos numa época de apatia cultural.
Também não é surpresa que sejam comédias, por muitos chamadas de "neo-chanchadas", os maiores sucessos de bilheteria dos anos 1990 até aqui. Com algumas exceções (como Tropa de Elite 2 e filmes religiosos), são as neo-chanchadas que atraem o público.
Incorporando novos temas, como o protagonismo feminino e questões de gênero, comédias como De Pernas Pro Ar, Se Eu Fosse Você e Minha Mãe é Uma Peça tornaram-se recordistas de bilheteria do novo cinema brasileiro. Casadas de papel passado com o público, as comédias continuaram a ser vistas com indiferença pela crítica. Isso quando são vistas.
A repetição de tal postura motivou a advertência de um nome de peso da reflexão cinematográfica do País, o crítico Jean-Claude Bernardet. Em texto de 2013, que teve muita repercussão, escreveu: "Após acalorada discussão em torno de De Pernas Pro Ar 2, venho a público manifestar minha esperança de que as gentes bem pensantes, os intelectuais, os artistas, os autores, os poetas e outros de gosto requintado, não caiam na mesma burrice dos anos 50. Foi preciso esperar a morte da chanchada para que a elite percebesse que Oscarito e Grande Otelo eram grandes atores, e que Carnaval Atlântida era um filme político.
Embates teóricos à parte, fiquemos com a sabedoria simples de Mazzaropi. Como afirmou em uma entrevista de 1952 ao jornal Correio Paulistano: "O público prefere a comédia. Rir e não chorar. Para chorar, já bastam os sofrimentos da vida". Afinal, como diz o próprio Oswald de Andrade em seu Manifesto Antropófago, a alegria é a prova dos nove.
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